Manifesto
A crise climática no Brasil é uma crise dos direitos das crianças e dos adolescentes
Manifesto inaugural da CLICA - Coalizão pelo Clima, Crianças e Adolescentes
Quando pensamos em mudanças climáticas, é comum nossa mente nos reportar a eventos extremos, como enchentes, tempestades e altas temperaturas. Há quem tenha uma perspectiva mais ampla e considere outras dimensões importantes, como o racismo ambiental, as desigualdades de gênero e os impactos desproporcionais que recaem sobre pessoas em situação de vulnerabilidade.
Os impactos das mudanças climáticas nas crianças e adolescentes, entretanto, são frequentemente negligenciados nesse debate, embora representem uma ameaça direta às infâncias e adolescências das gerações atuais e futuras, colocando em risco seus direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura e à dignidade. Portanto, a crise climática coloca em risco os direitos das crianças e dos adolescentes.
A Convenção dos Direitos das Crianças, tratado internacional aprovado em 1989 e que visa à proteção e promoção dos direitos de todas as crianças e adolescentes, considera a preservação do meio ambiente uma condição fundamental para que essa parcela da população possa exercer plenamente seus direitos.
Além disso, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas reconheceu, em diversas resoluções, como na 37/58, 35/20 e 40/11, que crianças, adolescentes e jovens são o grupo mais vulnerável às mudanças climáticas. Isto pelo fato de que a crise climática impacta diretamente o pleno desenvolvimento dessa população, tornando-a mais vulnerável a desastres, escassez de alimentos e água limpa e potável, além de propagação de doenças.
Segundo o UNICEF (2021), praticamente todas as crianças e adolescentes do mundo estão expostos a pelo menos um risco climático e ambiental. Além disso, aproximadamente 1 bilhão de crianças e adolescentes – quase metade da população infantil - vivem nos 33 países classificados como de "risco extremamente alto".
Segundo relatório do Unicef Brasil (2022), o Brasil é classificado como um país de alto risco - na América Latina e Caribe, somente o México possui um índice superior. O mesmo estudo aponta que, no país, 8,6 milhões de crianças e adolescentes com menos de 18 anos enfrentam o risco de falta de água, enquanto 7,3 milhões estão expostos a enchentes fluviais. Adicionalmente, 1,8 milhão lidam com o perigo de enchentes costeiras e 13,6 milhões com ondas de calor. Quanto à poluição do ar, 24,8 milhões de jovens brasileiros enfrentam riscos associados à poluição atmosférica, causada especialmente pela emissão de veículos automotores e queimadas, enquanto 27,8 milhões residem em áreas do País com alta exposição à contaminação por pesticidas.
O relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) de 2023 destacou a crescente frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, escassez de recursos hídricos e alimentares, migração forçada e problemas de saúde relacionados ao clima. A janela de oportunidade para limitar o aquecimento global a 1,5 graus ºC está se fechando rapidamente, e a necessidade de ação imediata e ambiciosa é mais urgente do que nunca. Para alcançar esse objetivo, é fundamental reduzir as emissões de gases de efeito estufa em pelo menos 50% até 2030, em comparação com os níveis de 2010.
As mudanças climáticas afetam significativamente outros âmbitos das vidas das crianças, adolescentes e suas famílias. No âmbito social, já agravam as desigualdades existentes. Em algumas localidades, a falta de acesso a recursos e serviços básicos, como saúde e educação, já é exacerbada pela crise climática, prejudicando ainda mais o desenvolvimento e o bem-estar de crianças e adolescentes.
A educação é prejudicada, uma vez que eventos climáticos extremos podem causar danos às escolas e interromper o acesso à educação, prejudicando o aprendizado e a formação de crianças e adolescentes.
No que diz respeito à cultura, as alterações do clima podem desencadear a perda de patrimônios culturais tangíveis e intangíveis, bem como a desintegração de comunidades e tradições. Esses processos afetam a identidade cultural e o senso de pertencimento das crianças e adolescentes, especialmente de comunidades indígenas e tradicionais. Neste ponto, a invasão de terras e a contaminação de mercúrio decorrente da atividade garimpeira, com graves consequências ambientais e na saúde da população comprovados, são fatores alarmantes.
As mudanças climáticas também têm implicações nas relações afetivas e na saúde mental das crianças e adolescentes. O estresse e a ansiedade gerados pela incerteza e medo do futuro, bem como a perda de laços comunitários e familiares devido a desastres climáticos, podem afetar negativamente a saúde mental e emocional dessa população.
Justiça Climática e Múltiplas Infâncias
Não é possível falar em mudanças climáticas sem considerar a influência que a desigualdade social e os diferentes marcadores sociais exercem na sua produção, bem como na distribuição de seus impactos. Essa preocupação parte da ideia de justiça climática, ou seja, a compreensão de que determinados grupos sociais estão mais vulneráveis às consequências negativas da mudança do clima - assim como há grupos sociais que são historicamente responsáveis por provocá-las.
Muitas das comunidades mais vulneráveis à mudança do clima estão localizadas em países pobres e insulares, que são os que menos contribuem para o aumento da temperatura do planeta. A desigualdade entre norte e sul global é revelada a partir dos dados sobre emissões de gases de efeito estufa (GEE): estima-se que mais de 90% das emissões de GEEs são produzidas pelos países do norte global, que constituem apenas 20% da população mundial. Enquanto isso, os 50 países com menor índice de desenvolvimento são responsáveis por menos de 1% das emissões de GEE (HICKEL, 2020).
Além da pobreza, há outros marcadores sociais que influenciam o grau de vulnerabilidade climática. A idade é um deles. Tal como os países mais pobres, as gerações mais jovens são as menos responsáveis pelas alterações climáticas, mas serão aquelas que suportarão as suas maiores e mais graves consequências, tendo o seu desenvolvimento afetado de formas diversas, desde a primeira infância à adolescência.
O conceito de justiça climática engloba, portanto, a ideia de justiça intergeracional: a geração adulta determinará, em uma escala sem precedentes, o mundo que as próximas gerações herdarão. Dessa forma, nós, enquanto comunidade, não podemos negligenciar a nossa responsabilidade: devemos respeitar os direitos das crianças e adolescentes, acolhendo suas reivindicações e criando condições para sua efetiva participação em espaços e negociações sobre clima, a fim de resguardar o direito das presentes e futuras gerações a um meio ambiente limpo, sustentável e equilibrado.
Para além da classe social e idade, o gênero e a raça são fundamentais para embasar análises e a implementação de projetos climáticos. Com relação ao primeiro, meninas e mulheres são desproporcionalmente atingidas pela mudança do clima. Nesses contextos, nota-se, por exemplo, que elas gastam mais tempo no trabalho de cuidado (sobrecarga doméstica); possuem risco elevado de sofrer violência doméstica e sexual; são excluídas de espaços de tomada de decisão; e são a maioria da população deslocada compulsoriamente no mundo, considerando mudanças climáticas e conflitos e guerras - 80% (OHCHR, 2022).
Já o racismo ambiental se expressa por meio da distribuição geoespacial desvantajosa que restringe significativamente o acesso de populações negras, indígenas e tradicionais a recursos naturais, à terra e a direitos fundamentais, agravando sua exposição a riscos ambientais severos (como desastres e doenças, por exemplo).
A Prioridade Absoluta dos Direitos de Crianças e Adolescentes
Nesse contexto de grave desigualdade e vulnerabilidade climática, a perspectiva das crianças e adolescentes é imprescindível para a responsabilidade de toda a sociedade com as vidas e com a natureza. E não é de hoje que elas denunciam essa realidade e reivindicam seus direitos.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é um dos frutos dessa mobilização. Seu artigo 225 consagra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, como bem de uso comum do povo, essencial à qualidade de vida, e que deve ser defendido para as presentes e futuras gerações. Na sequência, o artigo 227 estabelece a absoluta prioridade dos direitos dessa população. Seu conteúdo está intimamente conectado ao artigo 225, se considerarmos que a qualidade de vida em um clima estável é condição para o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes.
Ainda, a prioridade absoluta dos direitos da criança frente à crise climática deve ser contextualizada, considerando as prioridades dentro do universo das múltiplas infâncias, conforme a legislação brasileira e internacional, que exige maior proteção para grupos de crianças ou adolescentes em situação de maior vulnerabilidade. A construção de uma sociedade igualitária e não discriminatória em todas as políticas públicas é um compromisso constitucional. E é necessário que a atenção do Poder Público, empresas e sociedade civil, tendo em vista a responsabilidade compartilhada determinada no artigo 227, volte-se com prioridade às infâncias e adolescências especialmente vulneráveis, na cidade, no campo e na floresta.
Objetivos da CLICA
Os direitos das crianças e adolescentes, bem como suas perspectivas acerca das mudanças climáticas, devem ser centrais, tanto na esfera nacional, como internacional, em todas as legislações, planos, programas e políticas. É importante destacar que a participação de crianças e adolescentes acontece tanto por meio de organizações, movimentos sociais e centros de pesquisa que atuam no advocacy dessa população, mas também por organizações lideradas por crianças, adolescentes e jovens.
É direito da criança e do adolescente, previsto na CDC, participar e ser ouvido em todos os assuntos que lhe dizem respeito, devendo-se levar em consideração a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua capacidade de formular seus próprios pontos de vista.
A Coalizão, por meio das instituições de sociedade civil, especialistas, centros de pesquisa, fundações, órgãos públicos, instituições reguladoras, movimentos e grupos de representação, pretende mobilizar toda a sociedade para que ela se comprometa cada vez mais com a vida das crianças e adolescentes. Mais precisamente, para que as políticas públicas voltadas ao clima, em perspectiva intersetorial, sejam sensíveis à realidade das infâncias e adolescências em toda a sua diversidade. Junto a isso, que as iniciativas públicas e privadas voltadas a esse público se integrem à agenda de enfrentamento à emergência climática.
Por meio de ações diversas, como produção de conhecimento, estratégias de comunicação e incidência em políticas públicas, buscamos construir respostas ao desafio urgente de proteção da vida e da natureza no Brasil.
Assim, são objetivos da CLICA:
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Realizar pesquisas e projetos que ofereçam subsídios e orientação para que gestores públicos e setor privado possam tomar decisões estratégicas em suas instituições e organizações que estejam alinhadas com os princípios e objetivos deste Manifesto;
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Articular e somar esforços para o desenvolvimento de compromissos oficiais e práticos em relação a este Manifesto, de forma intersetorial e inclusiva em relação a diversidade de territórios e populações do Brasil;
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Apoiar o desenvolvimento, regulamentação e implementação de planos municipais de enfrentamento às mudanças climáticas para que estes considerem a participação de crianças e adolescentes, sendo sensíveis às suas necessidades e reivindicações, e baseadas na natureza;
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Articular estratégias que estimulem o contato e acesso de crianças e adolescentes a áreas verdes e azuis, especialmente nos espaços de permanência em longo termo, como escolas, centros comunitários, assistenciais e culturais, abrigos, centros de saúde e hospitais;
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Comunicar e disseminar de forma transversal e intergeracional, com a participação ativa de crianças e adolescentes, temas especializados e técnicos, de maneira acessível, para que a comunidade possa se apropriar e se envolver nas mobilizações necessárias para influir em políticas públicas e ações práticas;
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Estimular o comprometimento das governanças para que o país atinja os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU), para garantir que a população tenha uma vida digna, sem comprometer a qualidade de vida das presentes e futuras gerações;
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Apoiar o desenvolvimento de instrumentos municipais de gestão de desastres (como Planos de Contingência e Planos de Adaptação Climática) que atendam os critérios internacionalmente reconhecidos do direito à moradia adequada, especialmente no caso das populações que vivem em áreas de risco e que precisam ser remanejadas para áreas seguras;
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Defender a disponibilidade e acesso à água de qualidade para consumo humano e acesso universal a saneamento básico;
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Incentivar/apoiar a execução de ações e/ou projetos dedicados à educação ambiental de crianças, adolescentes e suas famílias, como caminho para fomentar o senso de responsabilidade pela preservação do meio ambiente.
Referências bibliográficas
HICKEL, Jason (2020). Quantifying national responsibility for climate breakdown: an equality-based attribution approach for carbon dioxide emissions in excess of the planetary boundary. The Lancet Planetary Health, Volume 4, Issue 9, pp. 399-404. Dispoível em: https://www.thelancet.com/journals/lanplh/article/PIIS2542-5196(20)30196-0/fulltext.
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Synthesis Report of the IPCC Sixth Assessment Report (AR6) – Summary for Policymakers. Geneva: Intergovernmental Panel on Climate Change, 2023. Disponível em: https://report.ipcc.ch/ar6syr/pdf/IPCC_AR6_SYR_SPM.pdf
Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR). Climate change exacerbates violence against women and girls, 12 jul 2022. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/stories/2022/07/climate-change-exacerbates-violence-against-women-and-girls#:~:text=It%20is%20estimated%20that%2080,women%2C%20according%20to%20UN%20Environment.
United Nations Children's Fund (UNICEF). The Climate Crisis is a Child Rights Crisis. Introducing the children’s climate risk index. New York: United Nations Children’s Fund, 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/media/105376/file/UNICEF-climate-crisis-child-rights-crisis.pdf
United Nations Children's Fund (UNICEF). Crianças, adolescentes e mudanças climáticas no Brasil. Brasília: Unicef, 2022. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2022-04/UNICEF-Crian%C3%A7as-Adolescentes-e-Mudan%C3%A7as-Clim%C3%A1ticas-no-Brasil-2022.pdf